O que nunca foi dito com franqueza sobre as profissões


Profissão é o estado, condição social, papel de um indivíduo que exerce um emprego, ofício ou arte como meio de vida ou ocupação habitual, na qualidade de subordinado ou por conta própria e visando algum tipo de reciprocidade.

Da mesma forma, chama-se profissional uma pessoa que já tem inveterados certos hábitos ou vícios, a saber: “Bêbado profissional”, “Chato profissional”, Ladrão profissional”, “Puxa-saco profissional” e por aí vai.

“Profissão de fé” é uma declaração pública que alguém faz de suas opiniões políticas ou sociais.

É esse sentido lato — que privilegia a rotina, o hábito, a prática usual e metódica de um mister — que adotamos aqui para designar as profissões e as atribuições que a certas criaturas toca cumprir por escolha própria ou pelas inconstâncias da fortuna.

Não estranhe, pois, o leitor encontrar arrolados entre os tradicionais ofícios fabris e as artes criadoras alguns modos de vida cuja inclusão possa parecer inapropriada. É que — pela carga semântica, pelo poder evocativo que têm — seu agente os acolhe de forma tão pacífica e os protagoniza com tão inexcedível zelo, que não podem ser considerados como simples passatempo.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

RACIONAL


Teórico que, para tudo, usa a mesma metodologia; que termina, sempre, por reduzir os mais diversos conceitos aos limites do quadro teórico em que se refugia.

Comentário
        Com efeito, o racional é refém de um modelo cujo Deus é a razão, ele mesmo o seu Cristo e a intolerância, o seu evangelho. Tudo com o fito de justificar uma ambição incurável, porque vive algemado a um odiozinho obscuro e impotente.
        Para que prospere o arcabouço racional, estabelece vasta jurisprudência alicerçada em literatura esconsa, credos, sacramentos e uma liturgia flexível, oportunista, gerando um calhamaço legitimador, um vademecum sob o formato de manual de uso de aparelho eletrônico que vai prosperando, eivado de sofismas e praxes viciosas, pateticamente agrilhoado a dogmas e jargões, para justificar currículos e proteger-se em torres de marfim.
        A mente racional escarnece do depósito sentimental que as gerações deixam no tempo; tem talento especial para não cometer nenhum erro, salvo os maiores. Acaba sendo vítima de uma coerência que a impede de distinguir um dos outros. O homem que raramente se engana julgando os outros, engana-se julgando a si mesmo.
        O racional pertence a uma categoria de gente que se situa acima das prosaicas pendências da banal e acomodatícia realidade; que não faz concessão ao despotismo dos costumes; para quem não há estio ou outono. Gente, enfim, que volta as costas à natureza, pois jamais prestaria obediência a instituição tão contraditória. O barômetro desses se resume a dois tempos: o das certezas e o das convicções. Fora daí, tudo são teorias. Integram um grupelho que tem por hábito viajar pelo atlas e o faz — por ser muito conveniente — quando lhe dá na telha.
        Ninguém pense que vá encontrar o racional aí fora no rush da vida, ainda que ele saiba aparentar com perfeição um certo respeito à letra da lei e à moral vigente. Mas se finge com tanta segurança é por que, para fazer valer o gigantesco faz-de-conta, filiou-se ao famoso idioma exclusivo, ambíguo e eufemístico que o socorre de espasmos autoritários disfarçados de veemência e franqueza.
        Não mete os pés descalços na poeira das estradas, não cultiva a variedade nem alarga a linha principal de concentração. Jamais olha por cima do muro nem fuça o que se passa do outro lado, para não duvidar do que vir.
        Falseia o peso das culpas (que não é tão intolerável assim) e preocupa-se permanentemente em investigar se nele existiu um dia a dimensão do canalha, que levianamente insiste em vislumbrar nos menores lapsos, na aparente futilidade dos outros.
        Esses caras, quando perdem as referências do atlas e têm que pegar o trem da vida, correm para o analista... uns cagões é o que são.

Pano rápido
“A vida humana é a única coisa que merece ser estudada. Nada tem valor quando comparado a ela. Mas também é verdade que não podemos investigar a vida no seu estranho cadinho de dor e prazer cobrindo o rosto com uma máscara de vidro, nem podemos impedir que a fumaça de enxofre que dele emana perturbe o cérebro, alterando a imaginação com fantasias monstruosas e com sonhos deformes. Há venenos tão sutis que, para conhecermos as suas propriedades, precisamos conhecer seus efeitos. Há doenças tão estranhas que, para conhecermos sua natureza, precisamos contraí-las. Mas o prêmio desta pesquisa compensa: ela nos leva a descobrir mil maravilhas! Esta pesquisa nos demonstra a estranha e dura lógica da paixão e a vida colorida e sensível do intelecto; aprendemos a discernir onde elas se juntam e onde se separam, o ponto em que estão em uníssono e o ponto em que aparece a discordância, e é aí que está o prazer. Não importa o custo! Nunca pagamos demais por uma sensação, seja ela qual for” (Oscar Wilde)

Breve conto
Brincadeiras à parte


        Desde menino, o Diogo incorporou a seriedade aos seus atos. Tantas vezes, em casa, diziam-lhe da importância de ser sério e dos riscos que trazia um comportamento blasé, que acabou por convencer-se, plenamente, das excelências de tal virtude.
        Quando entrou para a universidade, o pai, um tipo seco de óculos de aros grossos, muito grave, advertiu-lhe:
        — Olha! Muita seriedade!
        É claro que essa postura extravagante, ainda mais num jovem, não lhe carreava qualquer tipo de simpatia ou camaradagem, até porque, se fosse procurada em toda a cidade uma carranca igual, seria impossível levar a bom termo tão dificultosa missão.
        Neutro, magro, pálido, carola, reservado ao extremo, era o protótipo do ronha. Enfim: um homem que não gostava de intimidades, abominava gracinhas, jamais ia a festas, não tinha amigos, não visitava nem recebia.
        Quando se casou, tratou logo de instalar em casa um clima apropriado de sobriedade e moderação, como convinha a um homem sério. Preocupou-se com os mínimos detalhes, como a escolha do bairro e da rua, e chegou a investigar, previamente, os costumes da vizinhança antes de mudar-se.
        Como não podia deixar de ser, escolheu uma mulher com hábitos e procedimentos condizentes com os que idealizava. Não queria uma esposa frívola; muito menos exibida. Glória tinha as virtudes requeridas, embora sem os arroubos profissionais do marido. Vários anos mais moça e de humor jovial, era morena e bonita. Em que pese o despotismo de Diogo — que a impedia de usar batom, roupa decotada e até cortar o cabelo — e a despeito de seu recato, ela conseguia manter-se atraente, com sua pele trigueira e lisa, capaz de dispensar maquillage, lábios de um vermelho natural, sendo impossível ao mortal comum ignorar o apelo de sua sensualidade inata. Não lhe foi custoso, portanto, obedecer ao marido.
        O importante é que foi um casamento sério, que transcorria sem maiores atropelos.
        Certo dia, quis a sorte que Diogo fosse contemplado com um prêmio milionário, decorrente da extração de um bilhete de loteria presenteado por um irmão, que pouco via. Tomou conhecimento da afortunada notícia ao ler o jornal, no escritório, um pouco antes do começo do expediente. Seu rosto contraiu-se num arremedo de careta, que ele julgou ser um sorriso.
        Contrariando o comportamento rotineiro, decidiu receber o prêmio ainda durante o horário de trabalho, e saiu do prédio com ar menos carrancudo, chegando, mesmo, a intrigar o porteiro, brindando-o com inusitada e baritonal saudação:
        — Até mais, querido!
        Ia satisfeito pela rua. A um conhecido que acenou discretamente, respondeu com cordialidade, chegando a dar-lhe um tapinha nas costas. O outro despediu-se dizendo:
        — O senhor parece mais moço... tão alegre!
        Enquanto esperava o sinal abrir para atravessar a rua, permitiu-se afagar um cachorro que lhe roçava as pernas. Logo ele, que detestava animais.
        Então, pensou na mulher e deu-se conta de que lhe era muito indiferente, que não lhe proporcionava diversão e, ainda assim, a pobre não se queixava, não exigia nada. Era preciso dar a boa nova a ela!
        Foi a um telefone público e ligou para casa, alterando o timbre da voz e assumindo ares menos cerimoniosos:
        — É com a Sra. Diogo Figueiredo que tenho a honra de falar?
        — Sim... disse a mulher — Quem está falando?
        Diogo, já se divertindo à larga, esqueceu de vez a temperança e prosseguiu na farsa:
        — Mas, como, amor, não me reconhece?
        — Ah! É você Antonio? Que imprudência! Calcula se meu marido estivesse em casa?
        Positivamente, a brincadeira não era coisa para o Diogo. Achou melhor continuar sério para o resto da vida.
(Conto de Rogério Barbosa Lima, publicado no livro Minha gente saiu à rua, 1998)

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